Publicación realizada en Comalapa (Guatemala, 2015) para la inauguración de la Casa KIT KIT KIT, que fue recientemente publicada y traducida por Georgias Quinta en revista Lucía (BR) 2022. Disponible en:
https://tendadelivros.org/lucia/wp-content/uploads/2022/03/Lucia_02_final_web_080322_site-1.pd
Ver original en:
revistadigital-calel
vídeo de la inauguración:
Traduzir espessuras para encontrar imagens no mundo
Georgia Quintas1
O subjetivismo entranhado na linguagem vai além de estabelecer um domínio, o significado do objeto, a aproximação com o imaginário e os contextos de ligação àquele lugar na qual a imagem se forma. No léxico do que poderíamos chamar imagem-palavra, cada ideia/proposição dizível (encarnada, digerida, sentida ou pensada) reverbera o quão atribuímos vida, intensidade, sentido e conhecimento ao invisível, que permeia os sentidos do mundo e das coisas.
Nesse caminho, quanto mais absorvemos as imagens, mais as guardamos, mais provocamos acessos de pertencimento. Poderíamos assim tão mais percebê-las ou não; absolutamente negativá-las. Não aceitar e nem concordar com significados sujeitados a tempos equivocados de outrora, às políticas dominantes, eurocêntricas e coloniais, desconjuntadas pela realidade e reflexões contemporâneas.
É nesse universo poroso da linguagem – em princípio, meio sem forma, sem borda, pelo qual vislumbramos o reconhecimento e construção das imagens em nós – que a escama da percepção areja nosso pensamento. Bem ali, quando a potencialidade poética se funde à palavra, quando o dito, a linguagem escritural, dissolve-se em imagens. Cria-nos empatia o excerto de Clémence Ramnoux2 quando reflete sobre o que “vive no combate das coisas e das palavras, trabalhando para compor um discurso semelhante, que não são palavras, que não é um discurso de pura semelhança. Essa seria a situação do homem entre as coisas e as palavras”.
Então, aqui, nessa linha, nesse momento, escrevo a palavra tradução, pois nela ancoramos o desejo interminável de vergar os sentidos possíveis para aquilo que o outro expressou – não só por palavras, através da linguagem escrita -, sobretudo no esforço (elaboração do discurso) que o fez compartilhar suas vivências e pesquisas. Ao colocarmos no ponto de partida o exercício da tradução, as palavras não tomam simplesmente o lugar de um outro idioma; elas buscam (nós buscamos) a espessura do sentido mais apropriado para o fluxo de percepção do autor diante das coisas reveladas por suas relações humanas, artísticas, de trocas simbólicas e de saberes. Por isso, as imagens e as palavras atravessam a transposição da escrita com seus sabores intrínsecos às mesmas ideias, em um espaço relacional de engate, por manilhas congruentes, que cria rizomas com as imagens inaugurantes do texto original.
Na tradução do texto Calel, da autora Graciela De Oliveira (formada em arquitetura, arte e antropologia, com prática em arte-investigação transdisciplinar), mantive o mesmo corpo estruturante: notas de rodapé, itálicos, pontuação e formas de enfatizar o discurso em consonância à abordagem do tema em análise. Bem como, tive a intenção de manter o ritmo pontuado não apenas pelo outro idioma, porém ainda mais pela abordagem em relato inerente ao texto. O texto Calel revela a dimensão ampla, de múltiplos entrelaçamentos, entre a rede simbólica e antropológica permeável aos dispositivos poéticos e artísticos trabalhados pela autora.
Nesse sentido, Calel – o texto – é sobre um artista, mas é também em si dispositivo artístico da pesquisadora Graciela De Oliveira. O diálogo existente entre a autora e Edgar Calel (artista de Comalapa, Guatemala) é realizado através de várias camadas perceptivas, tempos de atuação, disponibilidade de escuta, procedimentos rituais, entre outros aspectos. Sobretudo, investiga-se o debate na qual a narrativa flui entre vida, arte e relações humanas. É também de grande pertinência a condução disruptiva colocada pela autora para o que emerge enquanto sequência reflexiva e teórica no âmbito da antropologia sobre alteridade e decolonialidade a respeito da “condição indígena”.
Outro ponto relevante trabalhado por Graciela De Oliveira, com sensibilidade e coerência, coloca em perspectiva o fazer curatorial em seu viés de interlocução, elo relacional, firmemente mais horizontal e traçado essencialmente pela partilha do conhecimento envolvido nesse campo de troca artística do que mesmo pela costumeira curadoria assinada. Ao traduzir, sempre há o devir da concessão mais adequada, um tracejar que não se desvie numa curva mais sedutora do que a própria sedução provocada antes. A intenção em traduzir Calel era de descortinar a sutileza da reflexão entre dois artistas; do olhar antropológico de um deles, do olhar fenomenológico decantado através de ancestralidades por outro, de tudo que se possa projetar pela poética e idiossincrasias metafísicas culturais. Graciela nos traz a Antropologia para criar seu dispositivo artístico e teórico, através da incessante construção de conhecimento em ato contínuo por meio da arte e visão de mundo do seu interlocutor Edgar Calel. E como bem refletiu Eduardo Viveiros de Castro (apud SZTUTMAN, 2008), as palavras “mudam”, mas as coisas são as mesmas.
Para os índios, é a natureza que muda, como se a gente tivesse um mundo onde todos falassem a mesma língua mas para se referir a coisas completamente diferentes, ao passo que nós tenderíamos antes a imaginar que todos falamos línguas diferentes mas para, no fundo, dizer as mesmas coisas.
E finaliza Viveiros de Castro: a questão é, pois, traduzir.
É o que todos estamos a fazer; tentar traduzir as coisas e encontrar os lugares de sentidos no mundo.
Referências
BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita 2: a experiência limite. Tradução de João Moura Jr. São Paulo: Escuta, 2007.
DE OLIVEIRA, Graciela. Calel. Unqillo, Córdoba (Argentina, 2015).
SZTUTMAN, Renato (org.). Eduardo Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008.
Notas:
1 Escritora, antropóloga, professora e pesquisadora no campo da teoria, filosofia e crítica da imagem fotográfica. Doutora em Antropologia pela Universidade de Salamanca (Espanha), com pós-doutorado em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e pós-graduada em História da Arte pela Fundação Armando Álvares Penteado – FAAP/SP. Co-fundadora da editora Olhavê. Autora dos livros Jogos de aparência – Os retratos da aristocracia do açúcar (2016), Inquietações fotográficas – Narrativas poéticas e crítica visual (2014), Abismo da carne (2014), Olhavê Entrevista (2012) e Man Ray e a Imagem da Mulher – A vanguarda do olhar e das técnicas fotográficas (2008).
2 Os estudos de Clémence Ramnoux sobre Heráclito (substancialmente vigoroso no texto Héraclite ou l’homme entre les choses et les mots) são abordados por Maurice Blanchot no capítulo sobre Heráclito (A conversa infinita 2: a experiência limite. São Paulo: Escuta, 2007). Blanchot discorre sobre questões filosóficas do pensamento e discurso heraclitiano, sublinha a presença da palavra e por conseguinte como os signos são fortalecidos pela ideia de “arranjo complexo da estrutura das formas”.
citar como:
DE OLIVEIRA, Graciela. «Calel». Trad. Georgia Quintas. In: Lucía – Revista feminista de cultura visual e tradução, edição 2, pp. 108-122, 2022.